O homem que não gostava de sítios altos
De onde este homem era as ruas não subiam nem baixavam, nem para quem vinha nem para quem ia. Lá onde a Terra era considerada plana porque era mesmo plana (a terra não a Terra). Ele era de Tubarão (parece-me uma tradução apropriada porque na realidade a sua localidade chamava-se Kanxoc, que em Maia quer dizer tubarão, mas o homem falava maioritariamente o dialeto maia yucateco, e mesmo que o som não seja o mesmo, o significado é, e o significado na escrita é mais importante que o som). Ganhava a sua vida a vender memórias mais ou menos falsificadas a preços totalmente adulterados, aos turistas que visitavam o Jaguar Negro (ou Ek’ Balam, mas, mais uma vez, a tradução parece-me mais lógica).
Tinha dois dentes incisivos dentro de pequenas caixas esqueléticas metálicas, não sei se servindo fins estéticos ou devido à medicina dentária moderna maia. De certeza que era um homem maia moderno, como tantos que tínhamos visto, de tal maneira que se sentia quase tão confortável a falar espanhol como eu. Baixo, abonado de boas gorduras, com pelos rarefeitos espalhados pela sua cara e moreno. Já tínhamos passado por outros maias que se fingiam de nativos mesmo sendo nativos, punham uns tapa rabos que duvido que algum dia tenham sido práticos ou usados e pediam a turistas para tirar fotografias consigo e a sua iguana, pouco nativa esta, porque domesticada. Mas o facto de ser moreno era importante, era muito moreno porque era pobre, e como diz a Marina devia passar muitas horas ao Sol à espera do colectivo, os ricos, esses, até para tomar banho punham camisolas, não fossem ficar demasiado escuros. Vestia de maneira normal, para o português normal só lhe faltaria a cruz ao pescoço, não que não fosse católico… Por lá há muitas igrejas altas, bonitas e coloridas espalhadas um pouco por todas as cidades coloniais. Não são restos do passado, são o presente, aqui todos falam maia, celebram a morte e bebem tequila, aqui todos falam espanhol, bebem coca-cola e vão à igreja.
De qualquer maneira o homem vendia de tudo um pouco, desde espelhos a t-shirts, passando por facas de vidro, dentes e estátuas de osso. Quase todos estes decorados com o calendário maia do ciclo solar, ou haab, e o carregador do tempo, ou Eq’anael. Muito devem gostar os gringos de calendários. Calendário haab este que nem sequer é o calendário Maia sagrado, ou Tzolk’in, de apenas 260 dias. O calendário haab é composto por 18 meses de 20 dias mais 5 dias ou Uayeb não nomeados, mas mesmo assim contados, que eram considerados dias nefastos ou de desgraça ou, ainda, de férias, algo que eu compreendo que possa ser parecido. Primeiro é preciso explicar que os maias eram dados à matemática e que o número 20 era muito especial, já que o seu sistema numérico era vigesimal e não decimal como o nosso.
Existem quatro carregadores do tempo por ano, ou nawales que ajudam o Eq’anael desse ano, que trocam entre si a cada equinócio ou solstício. Estes quatro carregadores formam um grupo, que vai trocando a cada ciclo de 52 anos, quando o calendário haab coincide de novo com o Tzolk’in. Existe um total de 5 grupos de carregadores do tempo. Ainda mais espetacular que isto é que 4 carregadores do tempo por ano vezes 5 grupos de carregadores dá um total de 20 carregadores e que 52 anos por ciclo vezes 5 ciclos dá um total de 260, que é o número de dias do calendário Tzolk’in. Além disso e ainda, como é um calendário que se regula pelos solstícios e os equinócios, é considerado até hoje o calendário mais exato, mais ainda do que o gregoriano que nós usamos, porque tem em conta o tempo total de rotação da Terra à volta do Sol, que nós andamos sempre a corrigir com o ano bissexto. Mas para o nosso vendedor a matemática era mais tentar perceber quanto dinheiro tínhamos no bolso para nos fazer um preço. Isto tudo porque a Marina queria um chapéu. Para quem não a conhece, ela é muito dedicada às tarefas, e fez parte do seu processo examinar todo e qualquer chapéu que por ali houvesse.
No início, este homem parecia-me o chefe porque não nos dirigia a palavra. Os vendedores que povoam estas bandas têm sempre um chefe, uma notavelmente obscura identidade que não os deixa descer mais o preço. Ele e o seu colega vendedor, um rapaz bem mais novo, comunicavam entre si antes de sentenciar os pesos necessários. Suponho eu que assim era, falavam em Maia, o que deixa à interpretação apenas a entoação, que nesta língua é bastante peculiar. Se me pusesse a adivinhar sem contexto diria que estavam a discutir, com ligeira discordância entre si, a melhor maneira de fazer tortilhas de milho. E não pensem que este ato é uma qualquer efemeridade procrastinatória, é sabido que os Maias davam uma grande importância ao cultivo de milho e de tudo o que daí advém. Voltando ao momento descrito, o jovem vendedor enumerava ao ritmo das minhas perguntas aquilo que por ali havia. As pequenas estátuas brancas de um guerreiro Maia segurando uma mulher simbolizavam o amor eterno, eram feitas num molde com um material à base de osso, as suas t-shirts com símbolos Maia eram pintadas à mão e não podiam ser lavadas durante dois meses, tempo durante o qual deviam estar expostas ao Sol, as pequenas figuras de madeira representavam divindades maia (como a do milho, ou Yum Kaax), as figuras e pequenas estátuas do Jaguar Negro eram o símbolo de Ek’ Balam… A sensação de que os vendedores se parafraseavam sucessivamente foi tal que eu me pergunto se não seguiriam algum guião sobre as lembranças que vendiam. Mas neste momento ainda estava a ouvir algumas pela primeira vez.
Com a demora e o tédio que se acumulava visivelmente em mim, enquanto esperava pela pós graduação em adornos cranianos da minha excelente esposa, o homem mais velho teve pena da minha figura e começou a falar comigo. Afinal falava um espanhol tão bom (ou tão mau) como o meu. E que homem tão bem informado, de Portugal gostava do FC Porto, mas também duvido que conhecesse algo mais. Este tema foi ainda mais finito que esta frase. Perguntei-lhe por cortesia como se chamavam as demoníacas e inúmeras lombas na estrada, disse-me que topes. Estes infindáveis topes mexicanos existem por todo e qualquer troço de estrada que tenha um aldeamento, cabana ou nem isso a seu lado. Algo que é inimigo da suspensão dos veículos e da paciência dos passageiros. Ele ficou muito intrigado com o meu espanto pela quantidade e altura destas estruturas. A ideia de as estradas não serem iguais de onde eu vinha causou-lhe alguma estranheza.
Perguntou-me como é que no meu país as pessoas sabiam quando tinham de travar. A minha cara deve ter mostrado algum desconcerto, não consegui dar resposta. Mas a minha incapacidade de desiludir o homem que estava à espera de alguma interação da minha parte levou-me a falar das nossas estradas que têm um exagero considerável de curvas. Ele perguntou-me o porquê de isso assim ser. De novo o desconcerto na cara, de novo a falta de resposta. Depois de refletir um pouco apercebi-me de que a planície do Yucatán não era muito dada a acidentes topográficos. Por isso comecei a falar de que na minha terra havia muitos montes e montanhas que obrigavam as estradas a ter de contorná-las ou subi-las, mais ou menos como a serpente sobe o Chichén Itzá no solstício. Ele estava um pouco perplexo, a sua cara foi mudando de expressão, quase como se estranhasse a existência de humanos nesses sítios. A sensação de estranheza acentuou quando falei de aldeamentos inteiros isolados nessas montanhas. Saben, a mi no se me dan las alturas, una vez fui hacia los Chiapas e he subido a un pequeño monte. No me sentía bien. Sufocaba, como los muertos que tienen toda la tierra en riba.
PS: Depois do extenso estudo do reportório chapeleiro, a Marina percebeu qual era o seu chapéu predileto. Na verdade nenhum dos que estavam ali expostos. Obrigou o pequeno homem a tirar a fita vermelha de um dos chapéus e a colocá-la noutro. Ficou muito satisfeita com o resultado. Perdeu-o cerca de 5 dias depois.